A infância é um conceito relativamente recente: do ápice da Revolução Industrial (século XIX) à atualidade, as crianças passaram a ser vistos de parte da força de trabalho como uma parcela da população preciosa a ser protegida – inclusive de publicidade excessiva.
No Brasil, os direitos das crianças são regidos principalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é mais recente ainda: foi promulgado em 1990. A infância é delimitada pelo ECA dos zero aos 12 anos; entre os 12 e os 18 anos acontece a adolescência.
Segundo o IBGE (2022), entre 12-24% da população corresponde a pessoas de até 14 anos. Ou seja: uma parcela bem considerável que tem múltiplos perfis de hábitos e de consumo.
As crianças mais novas quase não têm impacto nas decisões de compra de seu lar; a família tende a tomar todas as decisões. Porém, conforme crescem, suas vontades e demandas passam a ser cada vez mais consideradas pela família em todos os aspectos: de compras de supermercado a brinquedos, passando também por vestimenta e lazer.
E de onde vêm os hábitos e desejos de consumo das crianças? De três principais áreas:
Destas, a regulamentação recai sobre a publicidade nas mídias.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC, 1990) explica de maneira direta: “a publicidade dirigida a crianças se aproveita da deficiência de julgamento e experiência desse público”. Sabendo que uma marca pode influenciar uma criança em apenas 30 segundos, é fácil concordar (Criança e Consumo falando sobre o documentário de 2018 Criança, a alma do negócio).
As crianças estão expostas à mídia o tempo inteiro: 75% das crianças de 9 a 17 anos acessam a internet mais de uma vez por dia (TIC, 2018) e a criança brasileira é uma das que mais vê TV no mundo, em média 5h35 diariamente (Ibope, 2015).
Buscando se adequar às demandas, existem canais e perfis de streaming com filtros de idade para garantir a adequação do conteúdo. Mas na internet, a coisa não é tão simples. O próprio Meta considerou criar uma versão para crianças das redes Facebook e Instagram, mas adiou o projeto por reconhecer a complexidade de sua regulamentação.
O Youtube já possui uma versão para crianças, o YouTube Kids, desde 2015. Mas, mesmo na versão para crianças, é fácil encontrar vídeos inadequados, como propagandas disfarçadas de entretenimento, incentivo a dietas e intervenções estéticas, além de violência, apologia a drogas e obscenidade (Mediatalks, 2022). Como exemplo, existem ainda vídeos que parecem ser um episódio comum de desenho, mas na verdade são versões editadas que podem incluir violência ou obscenidades.
Voltando para a seara da publicidade, um dos conteúdos mais populares no YouTube Kids e que estimulam o consumismo no público infantil são os de unboxing de brinquedos, especialmente os que incluem surpresas ou brindes. Desde 2021, a empresa adaptou suas regras visando restringir conteúdos excessivamente comerciais – mas não parece ter tido muito sucesso.
A proibição da publicidade infantil (isto é, diretamente dirigida às crianças) e a regulamentação sobre publicidade de produtos infantis vem de muitas instâncias – começando pela Constituição Federal (1988), que determina como obrigação coletiva da sociedade assegurar os direitos das crianças. A regulamentação mais específica está nos seguintes textos: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Autorregulamentação Publicitária (CAP), o Código de Defesa do Consumidor (CDC), e a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e do Adolescente (Conanda).
Para facilitar, resumimos aqui as diretrizes gerais:
Quando o produto estiver na categoria de alimentos e medicamentos, é também regulamentado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que determina normas inclusive para as embalagens e pontos de venda.
Neste ano aconteceu uma atualização das regras de rotulagem frontal de alimentos, também essenciais para família e crianças entenderem o que estão consumindo (O Joio e o Trigo). Passa a ser obrigatório informar o total de açúcar do produto e de açúcar adicionado – antes, essas informações ficavam disfarçadas no genérico índice de carboidratos. Como não há regra para indicar o excesso de adoçantes, as indústrias ainda podem trocar um ingrediente pelo outro para evitar a rotulagem frontal, então é preciso manter a atenção. Em outros países do mundo, como o Chile, é vetado o uso de personagens de mídias infantis nas embalagens de alimentos.
As regras parecem muitas, mas são essenciais para proteger as crianças. Se você tiver dúvidas ao preparar uma campanha que inclua produtos infantis, um jeito de simplificar a situação é fazer dos pais ou da família da criança o seu público-alvo.
Existem múltiplos canais de denúncia sendo o principal o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), que pode exigir alterações na campanha ou até sua suspensão. Também é possível denunciar propagandas abusivas no Procon, a partir das diretrizes do Código de Defesa do Consumidor e até no Ministério Público, embora este último seja um caminho mais árduo.
Existem também ONGs voltadas para a mobilização e conscientização contra práticas publicitárias abusivas, como a Somos todos responsáveis! e a Criança e o Consumo.
Embora as regulamentações sejam importantes, também é essencial estimular o pensamento crítico das crianças – especialmente considerando que vivemos em uma sociedade altamente digital e que as crianças muitas vezes estão expostas a ambientes digitais em que é mais difícil monitorar e fazer cumprir as leis.
Mesmo que possamos reduzir o acesso das crianças a telas, é impossível isolá-las completamente das influências midiáticas. Assim, cabe a cada um de nós educá-las e criar uma literacia midiática, ou seja: o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que permite às crianças a interpretação das mídias com as quais têm contato (Política Nacional de Alfabetização, 2019).
Tratar as crianças como sujeitos e estimular sua capacidade analítica, mantendo aberto o diálogo sobre propaganda e consumo tanto em casa e como nas escolas, é uma das medidas mais essenciais para diminuir a vulnerabilidade desta parcela da população.